O chamado individual de João Batista

 

O trabalho biográfico considera a biografia humana inserida nos grandes e pequenos ritmos do sistema solar. Os ritmos do dia, da semana, do ano são considerados processos respiratórios da Terra e da vida da alma humana que flui nestes ritmos, alternando-se da consciência individual, para a consciência coletiva e para a consciência planetária. Neste pulsar da vida, da alma e da consciência, a Jornada do Eu, o processo contínuo de autodesenvolvimento pode ser acompanhado no decurso do ano.  

“Torne-se quem você realmente é”

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A festa de João fecha o primeiro semestre do ano e, as alegrias que proporciona ficam nas lembranças de muitas gerações de brasileiros, independente de suas raízes religiosas.

Junho é um mês em que todos tornam-se caipiras, pulando fogueiras, dançando quadrilha, acendendo lanternas, pendurando bandeirinhas, entre encontros e reencontros. São João é uma festa do anoitecer. Somos todos sertanejos debaixo do céu estrelado de junho. Levantar os olhos para apreciar o céu de junho é um ato devocional; as almas também se elevam e na imensidão do azul que nos envolve nos sentimos conectados a algo maior.

Mudem os seus corações e suas mentes e preparem-se para a nova era”- clamava João às margens do Rio Jordão. Em grego, Johannes, era um título atribuído ao indivíduo que conseguira expressar o seu ser no mundo. “Torne-se quem você realmente é” repetia João nas suas pregações, apelando diretamente ao senso individual do que é certo e errado.

Após ser batizado por João, o indivíduo passava a considerar o seu destino pessoal em interação com o destino de toda a humanidade. Isto significava uma intensificação da consciência de que o que acontece além das fronteiras do meu cotidiano também é da minha responsabilidade. O Batizado sentia-se inserido em uma ordem humana universal.

Debaixo do sol escaldante da Galileia, as palavras de João queimavam nas almas dos ouvintes, vindos de todos os lados, sedentos de novas verdades. João Batista pertencia a uma longa linhagem de profetas do Antigo Testamento. Ele é considerado “o último dos profetas” de uma genealogia que ainda vivia em comunhão com os ensinamentos recebidos diretamente do Deus Pai. João havia fortalecido a individualidade no calor, na solidão e na imensidão das terras áridas do deserto, onde para sobreviver, as criaturas precisam encontrar forças em si mesmas. Se tornou conhecido como a “voz que clama no deserto”.  E na sua peregrinação anunciava por onde passava “aquele que ainda estava por vir” e que seria reconhecido por ter alcançado um novo estado de ser.

“Vim para preparar o caminho do Novo Ser. Vim para dizer-lhes que um novo impulso entrou na corrente dos seres humanos. Venho proclamar uma vida nova”.

Assim falava João, de si próprio e de sua missão.   

O encontro como força do futuro

“Flama preciosa do entusiasmo quando te lanças de um ser humano a outro e inflamas seus corações, neste momento é quando os deuses se abraçam.” (Christian Morgenstern)

O batismo de João era um ritual de passagem. A pessoa, submergida por ele nas águas do Rio Jordão, era levada até o limiar da morte por afogamento e via desdobrar-se diante de si, em retrospectiva, o panorama de sua vida. Retornava então desta experiência com a consciência intensificada e com uma nova compreensão do sentido de sua própria vida.

Jesus de Nazaré andara um longo caminho até o Jordão. Na Galileia de dois mil anos atrás, o caminho de um iniciado passava por vários graus de conhecimento e purificação. O homem que se apresentou para ser batizado por João, não só cumprira todas as condições, como dele emanava tal força que fez João, inicialmente, recuar. Um diante do outro, de ambos, emanava a espécie de reconhecimento que pode impregnar o encontro humano com uma qualidade evolutiva.

Ao cumprir a sua profecia e batizar Jesus, João lega à humanidade a poderosa imagem do Novo Homem, aquele que alcançou toda a sua grandeza, que se desenvolveu a partir das próprias forças.

A jornada do Eu no decurso do ano

As festividades, independente da diversidade cultural, são patrimônio da humanidade. Elas comemoram a harmonia que existe entre o universo, a terra e o ser humano. Elas celebram o espírito solar como uma força viva que atua na formação da comunidade humana. Elas reforçam a identidade individual, para que cada um, com a força pessoal intensificada, possa seguir adiante na caminhada solitária, reconectado com o sentido e propósito de sua existência. A pedagogia Waldorf as denominam de “épocas do ano” e as relacionam com quatro qualidades espirituais, rituais de passagem do desenvolvimento da criança, associados aos grandes eventos da biografia da humanidade descritos nos livros sagrados.

O chamado de João e a crise de autenticidade

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Ao conhecer o significado da festa de São João, eu descobri que a pergunta “quem sou eu”, que me trazem todos os dias durante o trabalho biográfico, ecoa nas almas humanas desde a antiga Galileia, remonta a séculos da nossa existência, e continua a ressoar até hoje. Muitos, talvez não todos, convivem com esta pergunta. Em relação aos meses do ano, posso confirmar por experiência própria, que este chamado individual no mês de junho ecoa ainda mais forte!

Podemos enxergar a época de João como um divisor de águas, não somente do ano em decurso, mas da biografia individual. Muitos de nós, a esta altura, revisamos as metas projetadas na virada do ano e fazemos um balanço do que conseguimos realizar. Em toda retrospectiva atua uma lei de desenvolvimento: a consciência se amplia e enxergamos a vida em uma perspectiva evolutiva; passado, presente e futuro. O olhar panorâmico desperta questões adormecidas sobre o propósito da própria existência. As questões “quem realmente eu sou” e “qual é o sentido da minha vida” estão no âmago das “crises existenciais” que ocorrem durante a trajetória biográfica individual.

Crises existenciais são momentos de incertezas na jornada biográfica, quando questionamos se a nossa vida tem propósito, se agrega valor ao mundo. Embora durante um pico de crise existencial possam aflorar muitos sentimentos e emoções, ela é mais abrangente do que uma crise emocional. A crise existencial está relacionada ao desenvolvimento da consciência e abarca tanto a biografia interna quanto a biografia externa. Ela provoca a sensação de que estamos perdendo o rumo, que as escolhas que fizemos nos trouxeram até então, mas não tem energia para nos levar adiante. Mesmo que a vida esteja nos eixos, que estejamos com saúde, recursos, atingindo metas materiais e profissionais, despertamos todos os dias com o sentimento de que aquele modo de vida não serve mais. É a falta de ânimo para seguir vivendo, são as indefinições em relação ao futuro, são os sentimentos de inadequação.

“Às vezes sucede que morramos, de algum modo, espécie diversa de morte, imperfeita e temporária, no próprio decurso da vida. Morremos, morre-se, outra palavra não haverá que defina tal estado. É um obscuro finar-se que não põe termo natural à existência...

O crescimento do espírito exige o baque inteiro do ser, um falecer no meio das trevas; a passagem. Mas o que vem depois, é o renascido, um homem real e novo. Não a todos, talvez assim aconteça. E, mesmo somente a poucos. Para alguns, entretanto a crise se repete, conscientemente, mais de uma vez, ao longo do estágio terreno, exata regularidade...nos demais é aparentemente provocado por um fato externo qualquer, uma grave doença, uma dura perda, o deslocamento para lugar remoto, alguma inapelável condenação ao isolamento.” (João Guimarães Rosa – fragmentos de Páramos de Estas Estórias)

A “crise de autenticidade”, que ocorre na passagem dos 42 anos, é considerada uma das principais crises existenciais da biografia humana. Autenticidade significa: genuíno, próprio. Depois de ter edificado a estrutura da sua vida chega aquele momento em que o indivíduo questiona tudo: “É isto o que eu quero para mim? O que tudo isto tem a ver comigo?” Bate aquele desânimo! Nem sempre é preciso ir ao deserto para se sentir no deserto! A vida interna pode se tornar tão árida, tão seca como a experiência de sobrevivência no deserto.

A pessoa se sente desconectada, estagnada. Tem urgência de encontrar uma esfera de atuação na qual possa expressar: “Quem realmente sou? A quem estou servindo? Qual é o sentido da minha vida?" Todos os dias, convive com o sentimento de que algo que vive em camadas mais profundas do seu ser anseia por vir à tona.

A crise de autenticidade repercute no trabalho, na relação de casal, na relação com os filhos, com os sócios, etc. Estamos sempre na iminência de pegar o celular, as chaves do carro, ou o que quer que seja, e ir embora! Somos facilmente ofendidos porque nos tornamos vulneráveis. Entretanto, permanecemos ocupados com a sustentação desta mesma vida que questionamos, ou preocupados, entendendo o que está se passando comigo: “porque não sinto mais amor?" A sensação geral é de que o chão, que antes nos sustentava, já não parece tão firme. É arenoso, escorregadio.

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Estas são questões que se apresentam no final da etapa de maturidade emocional, que é um limiar de desenvolvimento pessoal. De um lado, o indivíduo transformou em inteligência emocional as experiências de dores e alegrias da luta pela vida. De outro, está diante do desafio de expansão da consciência de si, quando poderá se tornar capaz de reconhecer o sentido maior da sua existência”.

"O que tenho que diminuir em mim, para que algo maior em mim cresça?"

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Flameja a pergunta nas labaredas da fogueira de São João. Os símbolos da Noite de São João permanecem no coração de todos como lembranças vivas; as bandeirinhas, tremulando, criam um ambiente de magia evocando lembranças ancestrais; o fogo aproxima as pessoas, os rostos iluminados pela luz das chamas; os reencontros se dão na base do reconhecimento; tudo contribui para um estado de consciência onírica, de vivência do divino, representado na festa pelo mastro hasteado com a bandeira de João Menino.

“Acende a fogueira do meu coração”. Celebremos João!

Externamente na alegria da festa e, internamente, nas palavras de Nelson Mandela: “Nascemos para manifestar a glória do universo que está dentro de nós. Não está apenas em nós, está em todos os nós. E conforme deixamos nossa própria luz brilhar, damos às outras pessoas permissão para fazer o mesmo”.

Edna Andrade

Imagens:

Paul Klee – Fairy Taes

Piero Della Francesca – O batismo

Chama – Foto de Maxim Tager - Unsplash







 


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